“Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Oh! que saudade do luar da minha terra
Lá na terra branquejando folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão”
(Luiz Gonzaga — Luar do Sertão)
O que é o Sertão?
O nordeste brasileiro possui praias paradisíacas e paisagens deslumbrantes, mas nem só de mar vive o nordeste. Ainda que possa um dia virar mar, como dizem as canções e os ditados populares, ou que já tenha sido mar um dia, como mostram as marcas de animais aquáticos nas pedras-cariri, o Sertão é uma sub-região que abrange grande parte do nordeste do Brasil.
Trata-se de uma interessante região que testemunha desde os mistérios do primeiro homem americano com pinturas de 12 mil anos atrás e fósseis de animais gigantes da época Holocena até o acervo paleontológico de evidências de 110 milhões de anos atrás. Ou, para os mais curiosos, lá abriga também grandes mistérios da ufologia onde terá um Centro de Estudos Extraterrestres.
Mas afinal o que é o sertão?
O seu clima quente e seco é chamado de semi-árido e tem como principal característica a seca que assola a região. O sertão é tão seco que a maioria dos rios de sua área é temporária, com exceção, é claro, do grande e belo Rio São Francisco, ou mais conhecido como Velho Chico. A vegetação típica do sertão brasileiro é a caatinga que é um bioma único no mundo e tipicamente brasileiro. A caatinga significa em tupi guarani ou mesmo em cariri: Mata Branca, tendo vista que a vegetação verde perde sua coloração original com a seca e se torna cinza, ou quase esbranquiçada.
A caatinga é uma vegetação que, em concordância com o povo sertanejo, teve de se adaptar e desenvolver algo único e mágico. É por isso que a caatinga embeleza a paisagem do sertão com sua fauna e sua flora. Ela é um bioma, diferentemente do que muitas pessoas são levadas a pensar, com uma rica variedade de espécies animais.
Sua principal característica é uma mata espinhosa e até mesmo desprezível ao olhar dos desavisados e que não a conhece. Foi inclusive esse desprezo que o próprio Brasil sustentou durante anos em sua história e desenvolvimento, sem valorizar o que há de melhor ali. A mágica dos redemoinhos de fogo, dos mistérios do luar, dos folclores e das figuras históricas contadas nas literaturas de cordel são o que fazem a lógica da cidade grande sequer ter lógica no sertão, porque, como diria Guimarães Rosa:
“Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar” (Grandes Sertão: Veredas)
Voltando à vegetação: as árvores do juazeiro e da carnaúba são duas das que mais chamam atenção ao passar pelas áreas de concentração d’água. Essas áreas são menores que as que são demarcadas pela grande seca.
Já o mandacaru, o quipá, o facheiro e o xique-xique são as variedades de cactos que marcam de fato o solo sertanejo. Entre lagartos, cobras-de-duas-cabeças e serpentes típicas da região, uma das espécies animais que mais chamam atenção a qualquer um que visite a caatinga e o sertão são os pássaros que aparecem coloridos em meio à mata cinzenta: soldadinho-do-araripe, periquito-cara-suja dentre outros. Apesar de que o que é mais comum de se guardar na memória de qualquer um que visite uma cidade do sertão sejam os bem-te-vis, que trazem uma beleza ao entardecer e ao amanhecer de algumas cidades.
E onde fica o sertão?
As três principais cidades que compõem o Sertão Brasileiro estão no nordeste e são Fortaleza, no Ceará, as cidades vizinhas e cruzadas pelo Rio São Francisco Petrolina e Juazeiro, respectivamente em Pernambuco e na Bahia e, finalmente, o Cariri que também é no Ceará. Só aí já temos quase 5 milhões de pessoas que são tocadas direta ou indiretamente pelo sertão.
Mas claro, o sertão é bem mais em números de pessoas. Não só porque a região do sertão abrange vários outros municípios, mas também porque sertão é um estado de espírito que é levado junto com o sertanejo, o que torna o número ainda maior pelo mundo afora. As localidades do sertão são também as principais áreas referentes ao polígono da seca, que vai do norte de Minas Gerais, Bahia, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
Por que não chove?
“Mandacaru, quando fulora lá na seca
É o sinal que a chuva chega no sertão”
(Luiz Gonzaga — Mandacaru)
“Por farta d’água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão”
(Luiz Gonzaga — Asa branca)
No sertão se chove muito pouco ou quase nunca, podemos dizer assim. E se, ainda assim chove, é rápido e logo passa. Afinal, uma das expressões típicas do sertanejo, quando vê um dia com nuvens ou com cheirinho agradável de chuva e “mormaço” é “hoje tá bonito pra chover!”. As chuvas são, de fato, uma benção a qualquer um que ali viva.
Lá existem também os Profetas das Chuvas que são pessoas que vivem na zona rural e são especializadas em adivinhar qual será quantidade de chuva de um ano que começa. Eles observam os sinais da natureza e fazem seus anúncios para um ano próspero ou não. No Ceará, há um encontro anual em que esses profetas se reúnem, chamado Encontro Anual dos Profetas Populares do Sertão Central.
Isso tudo porque as chuvas na região concentram-se em apenas três ou quatro meses do ano. A pluviosidade no Sertão chega à média de 750 milímetros anuais, sendo que em algumas áreas chove menos de 500 milímetros ao ano.
Qual o significado de Sertão?
O mistério do sertão começa pela origem da palavra. Essa e outras palavras nordestinas como “cangaço” e “caatinga” são de origens diversas e curiosas, no português do novo mundo em fusão com outros idiomas. O significado da palavra sertão em si é pouco conhecido, mas leva às várias especulações e está muito conectada à situação histórico-social do interior do Brasil, diferenciando-se das áreas litorâneas em que se desenvolveram as grandes cidades.
Isso demarca principalmente zonas pouco exploradas pelos homens. Provavelmente a palavra sertão vem do vocábulo angolano “mulcetão” que significa local distante do mar, um pouco próximo também de “desertão” e que se tornou depois de algumas variações a palavra que hoje conhecemos. Mas o significado de sertão, além de muita história do Brasil, tem também o sentimento desse povo que se expressa através da arte.
Fazem parte da cultura sertaneja: a sanfona, o triângulo, algumas vezes o violão e a cantiga rimada. O Sertão certamente encanta vários artistas. Nessa lista de inúmeros artistas de renome nacional como Elba Ramalho, Zé Ramalho, temos também Alcimar Monteiro em O Sertão que a Gente Mora e Flávio José e sua música Sertão e, claro, as várias canções do mais célebre representante que é Luiz Gonzaga.
Esse último levava não só as canções típicas da região, mas também a sua estética de vaqueiro, com roupas de couro e chapéu de couro que faziam a representação do vaqueiro típico do semi-árido. As canções rimadas estão ligadas diretamente ao fato do sertanejo chamar a sua própria conversa de prosa e muitas delas serem sobre os mistérios da região e sobre o amor.
Na literatura, as obras primas podem ser listadas entre os escritores Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas; Euclides da Cunha em Os Sertões; Graciliano Ramos em Vidas Secas e, finalmente, Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto. Claro, não pararíamos por aí, pois existe um número vasto de obras e artistas que se encantam pela temática do sertão e do sertanejo. Esses, como inúmeros outros artistas e intelectuais tiveram no sertão sua principal inspiração.
Por que o Sertão?
Ora, se naquilo que podemos chamar de literatura universal, termo cunhado por Goethe, temos o pacto com o demônio na sede insaciável pelo conhecimento, a astrologia, as vidências e feitos sobrenaturais, Guimarães Rosa retrata a mesma coisa em pleno Sertão brasileiro. Isso porque o sertão não é apenas cenário, mas também estado de espírito para as obras de arte. É o lugar da adversidade à vida. É lá onde não seria possível que nada existente vivesse, mas é justamente lá onde a vida mostra que é possível.
Tomando as palavras do próprio Guimarães:
“Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” (Grandes Sertão: Veredas).
Na maior das adversidades naturais, sociais, históricas, econômicas ou mesmo sobrenaturais, no caso: Deus ou o Diabo, no sertão há, ainda assim, vida para o sertanejo. No sertão, é possível se extrair muito de pouquíssimo. Ou como dizem: é possível tirar leite de pedra. O sertão possui um significado forte. O sertão é seca, dor, sofrimento e pouca sorte, mas também luta, perseverança, inteligência e força de vontade. Não só de uma pessoa ou algumas figuras simbólicas como Lampião, Antônio Conselheiro ou Padre Cícero, mas de cada pessoa que ali vive, pois, no fundo,
“o sertão está em toda parte” (Grandes Sertão: Veredas)
O sertão é lugar de onde nascem os fortes
Os temas da guerra, da luta, a formação dessa pessoa que vence as dores e qualquer adversidade, tanto natural, quanto divina ou mesmo social é o que faz o sertanejo ser quem ele é independente de onde esteja, porque o sertão mesmo
“é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade” (Grande Sertão: Veredas)
O que então faz com que a arte seja sempre curiosa por essa temática, por essa vegetação, por esse clima? A carência de água, a pobreza e a fome exigem do sertanejo uma verdadeira perseverança e coragem na vida. É impossível o sertanejo não ser uma pessoa forte. O sertão é lugar de onde nascem os fortes. Esse termo de fortaleza foi cunhado por Euclides da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.
Um desses fortes, por exemplo, e para figurar um pouco a imagem do sertão historicamente é um mito chamado Lampião. A história brasileira não tende a valorizar seus heróis ou mitos, mas lampião, apesar de bandido, conseguiu seu espaço na memória de todo o Brasil. Ele está nas revistas em quadrinhos, nos cordéis, nos poemas, nas canções, quadros, pinturas etc.
No entanto, muitos personagens históricos estão gravados no sertão: Padre Cícero e Antônio Conselheiro, por exemplo. Mas aquele que merece atenção ímpar é o rei do cangaço: Capitão Virgulino Ferreira da Silva, nascido em 1898 e mais conhecido como Lampião. Ele é talvez o anti-herói mais conhecido na história do Brasil e falar do sertão sem Lampião é como tirar a essência de ambos. Lampião é a figura do banditismo social brasileiro. Ele foi um cangaceiro, vindo exatamente do cangaço.
E o que é o cangaço?
É o símbolo do sertão: ele é o esqueleto do animal morto, encontrada comumente nos caminhos da mata seca.
Lampião ganhou atenção porque era um rebelde que se revoltou, com sua sede de vingança, contra a injustiça social. E esse é justamente o espírito do sertanejo. Ele é fruto de uma desigualdade social. E quando estamos falando de sertão, estamos falando muito mais a fundo, estamos falando do coração do nordeste, da coragem, da fortaleza e dos bandidos sociais e dos rebeldes que, com suas roupas de couro, suas espingardas e sua fortaleza faziam os cowboys fora-da-lei; e em vez de velho oeste americano, temos um “velho nordeste” brasileiro. Aliás, o próprio nome “lampião” é por conta do fuzil de Virgulino que, durante o tiroteio estava sempre aceso. Para não falar, é claro, de seu romance com Maria Bonita que era uma feminista avant la lettre e tornou esse movimento misto, trazendo as mulheres ao banditismo.
É essa coragem que é a marca histórica e social do sertão. É com essa garra nas mãos que temos na história as migrações da seca para as regiões mais desenvolvidas do país, essa busca por uma oportunidade em outros lugares, mas sem deixar de levar aquilo que a própria natureza ensina.
Para finalizar, podemos dizer que o sertão é essa marca de carência, de pobreza, de sede, de fome e de adversidade geral, mas a resposta a isso está na astúcia do sertanejo, com sua coragem, sua vontade de migrar para outras regiões e mundo afora levando, mesmo assim, o sertão em seu peito.
Filmes para assistir:
A vida do sertanejo ou o cenário em que ele vive é algo que inspira muito também as obras cinematográficas, dentre elas temos:
- Deus e o Diabo na Terra do Sol de 1964, mesmo ano em que ganhou o prêmio Cannes e foi indicado à Palma de Ouro.
- Bacurau de 2019 de Kleber Mendonça, ganhou o prêmio em Cannes.
- O auto da compadecida de 2000 é uma adaptação do livro de Ariano Suassuna.
- O Cangaceiro de 1953, dirigido por Lima Barreto.
Locais para conhecer:
Museu dos Sertão em Petrolina
Exposição Vaqueiros no Museu da Cultura Cearense de Fortaleza
Museus Orgânicos dos Mestres de Cultura Tradicional do Cariri em Potengi
Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens em Santana do Cariri
Parque Nacional da Serra da Capivara em São Raimundo Nonato