Corinthians do meu coração,
Tu és religião de janeiro a janeiro.
Ser corintiano é ir além
De ser ou não ser o primeiro.
Ser corintiano é ser também
Um pouco mais brasileiro.
Toquinho — “Corinthians do meu Coração”
Com essa música que Toquinho dedicou, em 1983, ao seu time de coração, começamos o texto de hoje para falar de um momento ímpar do esporte e principalmente do futebol mundial.
O amor pelo Corinthians divide os brasileiros em dois grupos: aqueles que amam e aqueles que odeiam o clube.
Você pode ser um dos dois, e, caso odeie, certamente reconhece a grande história e a importância que o time teve na década de 80.
Os tempos de Sócrates e Casagrande são inesquecíveis não só para os fãs e torcedores de carteirinha, mas também para todo amante do bom futebol.
O fato é que esses personagens marcaram um capítulo interessante da história não só do futebol, mas do esporte em geral.
Mas afinal você já sabe ou lembra o que foi a democracia Corinthiana?
A Democracia Corinthiana foi um movimento bastante interessante que aconteceu no futebol brasileiro e que tinha por objetivo a autogestão esportiva do clube.
Ou seja, a proposta era que o clube não tinha mais uma liderança específica para comandar e tomar decisões importantes. Cada decisão era tomada em conjunto, com reunião e votação.
Esse movimento teve seu auge no time do Corinthians na década de oitenta, entre os anos de 1982 e 1984.
Seria uma enorme conquista para aqueles que defendiam essas ideias não ter um poder centralizado no clube. Isso era bastante inovador para a época e assim marcou a história do futebol pelo mundo.
Isso porque a Democracia Corinthiana teve seu início em plena Ditadura Militar, isto é, o Brasil não estava vivendo um momento democrático, as pessoas não escolhiam sua representação política e a liberdade estava bastante restrita.
Enquanto isso, no Corinthians, todas as decisões passaram a serem tomadas pela votação dos participantes, dirigentes, atletas e equipe de apoio.
Dessa forma, desde o roupeiro do clube até o dirigente tinham a mesma importância e suas opiniões valiam como iguais.
Esse movimento democrático teve começo num momento em que o time do Corinthians não estava muito bem nem no Campeonato Paulista nem no Campeonato Brasileiro.
É grande no esporte bretão,
O passado ilumina tua história.
Ciente de tua missão:
Vitória, vitória, vitória.
Toquinho — “Corinthians do meu Coração”
O time tinha feito uma temporada ruim, ficando em vigésimo sexto lugar no Campeonato Brasileiro e oitavo lugar no Campeonato Paulista do ano de 1981.
Quando acabou a gestão de Vicente Matheus em 82 e com o cargo no nome de Waldemar Pires, o clube ganhou como gestor o sociólogo Adílson Monteiro Alves que incentivava a liberdade de opinião de cada um dos jogadores sobre vários assuntos, e foi aí que o movimento começou de fato.
Autogestão é algo complicado nos dias de hoje, imagine naquele tempo.
Mas, é fato que o movimento não teria tanta força se não fosse a grande dupla de jogadores Sócrates e Wladimir.
Foi aí que finalmente a Democracia Corinthiana colheu seus frutos.
Com esses dois personagens e a autogestão que eles defendiam, o time acabou conquistando em 82 e em 83 o Campeonato Paulista e conseguiram chegar às semifinais do Campeonato Brasileiro.
Esses títulos, a notoriedade do time e a moral lá em cima fizeram com que o time voltasse com todo vigor e conseguisse quitar várias dívidas, garantindo ainda três milhões de dólares para a temporada seguinte.
Foi realmente um momento de ouro do futebol, mas apesar disso, é importante focar em sua importância política.
Democracia Corinthiana e Ditadura
Contra todo ditador que no timão quiser mandar
Os gaviões nasceram para poder reivindicar
Os direitos da fiel que paga ingresso sem parar
Não temos medo de acabar
Corinthians joga eu vou estar lá
Nossa corrente é forte e jamais se quebrará
Pelo Corinthians, com muito amor
Até o fim
Ga-vi -ões fiel
Trecho de um dos Gritos de Guerra da Torcida do Corinthians
Num Brasil de Ditadura Militar, a Democracia Corinthiana se mostrava a favor do povo e chamava a população para a luta de sua liberdade e o fim da do regime autoritário no país.
A relação entre Democracia Corinthiana e Ditadura, já está no próprio nome, mas não só nele.
Os grandes jogadores do Corinthians vestiam camisas por debaixo do uniforme, para mostrar, quando faziam seus gols, as frases do tipo: “eu quero votar para presidente” ou “diretas já!”.
Tais frases apelavam à necessidade da democracia retomar suas forças políticas no Brasil.
E os atos de mostrar a camisa após o gol, junto com o bom desenvolvimento do time, influenciavam logo de cara a grande multidão de torcedores no Brasil todo.
Se o Corinthians ganhasse o título ou o jogo, a democracia ganhava com isso.
Cada gol era uma frase de efeito que aparecia para milhares de pessoas.
A liberdade, a igualdade e o respeito da opinião de cada jogador era uma experiência completamente diferente da que vivia o Brasil no momento da ditadura, o que fazia com que os jogadores tivessem realmente um ato político expresso contra o governo vigente.
É por isso que, nos anos da Democracia Corinthiana, o Corinthians não foi só um dos times principais e de peso, com sua torcida imensa, mas mostrou o valor da democracia e da liberdade, valores esses bem avessos ao seu tempo, fazendo história no mundo do futebol.
Falamos já que Sócrates e Wladimir representavam bem o movimento, mas não só eles. Dentre toda equipe de jogadores, podemos destacar Casagrande, Biro-Biro, Zenon e Zé Maria.
Além deles, e trazidos pelo grande publicitário Washington Olivetto, alguns artistas como Rita Lee, ou mesmo o comentarista Juca Kfouri representavam bem as ideias da Democracia Corinthiana na mídia.
Teu passado é uma bandeira
Teu presente é uma lição
Figuras entre os primeiros do nosso esporte bretão
Corinthians Grande
Sempre Altaneiro
És do Brasil
O clube mais brasileiro
Trecho do Hino Oficial do Corinthians
Um grande detalhe é que as ideias brilhantes de W. Olivetto para o marketing do Corinthians não eram cobradas pelo marqueteiro. Ele produzia as ideias e não pedia remuneração.
A grande vitória para ele era reconquistar a liberdade que seu país tinha perdido.
E, de fato, não havia melhor retribuição do que um time campeão com a torcida vencendo a Ditadura.
O grande nome desse movimento foi Sócrates. E o jogador sempre estava lutando por questões políticas diversas desde muito novo.
Democracia Corinthiana e Sócrates
Sócrates foi interrogado pela Ditadura Militar junto com Casagrande algumas vezes, devido aos seus atos a favor da democracia.
O próprio jogador, antes de falecer, declarou ainda que queria muito trabalhar com Hugo Chávez em projetos políticos e sociais para o esporte.
A Democracia Corinthiana marcou muito a vida de Sócrates e vice-versa.
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira é o nome desse craque dos gramados, mas muitos preferem chamá-lo carinhosamente de Doutor Sócrates, Magrão ou simplesmente Doutor, isso porque ele foi formado em medicina.
O nome de Sócrates veio justamente pelo fato do pai gostar muito de ler e fez essa homenagem ao grande filósofo grego.
O pai dele gostava tanto de ler que deu nomes de Sóstenes, Sófocles aos seus outros filhos. Junto com esses, ele teve Rimar, Raimundo Filho e o grande jogador Raí.
Sua família saiu do Ceará e do Pará para São Paulo e foi em Ribeirão Preto que Sócrates foi criado, torcendo pelo seu time de coração que era o Santos.
Muito tempo depois, ele fez medicina e se formou em 1977 na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Isso acontecia ao mesmo tempo em que jogava profissionalmente, desde seus dezesseis anos, no clube Botafogo.
Irmão do outro grande jogador Raí, esse grande ídolo do Corinthians é um dos grandes nomes do futebol brasileiro e, título dado pela FIFA, um ícone do futebol mundial.
Ele ganhou grande ênfase mundial pela sua militância política. Sócrates defendia a democratização do futebol e apoiava as Diretas Já no Brasil.
Além disso, foi também treinador e comentarista. Ele tinha todos esses talentos esportivos e tinha também o talento de ator, produtor teatral e músico.
Na música, Sócrates gravou um LP de música sertaneja que se chamava Casa de Caboclo e participou de Aquarela de Toquinho.
Ele fez ainda um álbum em 1984, em parceria com Bueno e Simone Guimarães, chamado de “Sócrates, Bueno e Convidados”.
Escuridão Iluminada
No sonho de um eterno campeão
A Fiel se abraçava
Amor reunindo a multidão
E quando a rede balançou
Esqueci a solidão
CORINTHIANS!
É tanta paixão
Sorriso do meu coração
CORINTHIANS!
Seja onde for
Pra sempre o meu grande Amor
Já raiou a Liberdade
Negro e branco construindo uma nação
Com as mãos entrelaçadas
A fé na mais pura expressão
E quando a rede balançou
Liberei a emoção
CORINTHIANS!
É tanta paixão
Sorriso do meu coração CORINTHIANS!
Seja onde for
Pra sempre o meu grande Amor
Festa Corinthiana — Sócrates e Simone Guimarães
Com Maria Isabel Lisandra produziu Perfume de Camélia e, na televisão, junto com Zico, participou de Feijão Maravilha, na Globo, contracenando com Ivon Curi, Olney Cazarré e Grande Otelo.
Salve o Corinthians
O campeão dos campeões
Eternamente
Dentro dos nossos corações
Salve o Corinthians
De tradições e glórias mil
Tu és orgulho
Dos desportistas do Brasil
Trecho do Hino Oficial do Corinthians
Com toda essa sensibilidade artística, um fato foi muito marcante na vida de Sócrates que foi ver seu pai sendo obrigado, pela Ditadura Militar, a queimar os livros que amava.
Talvez isso tenha influenciado muito sua personalidade e seus valores.
O fato é que todo corintiano que goste da história do time incluiria Sócrates no time dos sonhos. Isso quer dizer que o ídolo leva junto seus ideais pelo mundo afora.
No ano de 83, Sócrates foi considerado o melhor jogador sul-americano. Em 2004, estava na lista dos melhores jogadores do mundo, além de ser reconhecido pela sua elegância e visão de jogo brilhante.
Teve muito destaque principalmente com o calcanhar, além, é claro, de gols de fora da área, de falta, de cabeça e inúmeros passes e assistências fundamentais para os gols de seus colegas de equipe.
Ele também já foi nomeado como um dos esportistas mais inteligentes da história pelo jornal The Guardian em 2015.
Na medicina, ele construiu, em 92, o Medicine Sócrates Center, na cidade de Ribeirão Preto.
Sócrates deixou como legado seis filhos, uma carreira de inúmeros títulos, jogou pela seleção brasileira e foi técnico de clubes nacionais e internacionais, além de receber convite para treinar a Seleção de Cuba.
Infelizmente, em dezembro de 2011, o grande craque nos deixou devido a um choque séptico e falência múltiplas dos órgãos, mas já estava debilitado com hemorragia digestiva associada ao alcoolismo.
Ele morreu no dia em que o Corinthians era pentacampeão brasileiro e foi muito homenageado na ocasião.
Não só o Corinthians, mas o Fiorentina na Itália decretou luto oficial, e todos os clubes do Brasil faziam um minuto de silêncio após sua morte até o fim dos campeonatos daquela temporada.
A FIFA também prestou homenagens ao grande jogador, além de várias equipes tidas como rivais do Corinthians, como Santos e São Paulo.
O esporte realmente mostra esse momento de valor e união entre as pessoas.
Jogadores e esportistas do mundo todo lamentaram sua morte e vários jornais mostraram sua repercussão e carreira.
Várias mídias mostraram seu lamento e principalmente os jornais em que o jogador já havia trabalhado: Carta Capital, Jornal Agora de São Paulo, além do programa Cartão Verde na TV Cultura.
E o que é mais importante, a história de Sócrates foi recontada para inúmeras pessoas, que repensaram seus valores de liberdade, igualdade, fraternidade e democracia.
A torcida do Corinthians levou a sério isso e sempre se manifesta até os dias atuais a favor dessas conquistas. A imagem do grande jogador está no mundo todo como símbolo dessa luta.
Democracia Corinthiana é uma farsa?
Não para, não para, não para
Vai pra cima timão
Não consigo nem dizer,
Tudo o que sinto
Eu só sei que até morrer,
Coringão estarei contigo
Por toda sua história,
Por toda sua tradição
Até o fim da minha vida,
Te amo timão
Trecho de um dos Gritos de Guerra da Torcida do Corinthians
Apesar disso tudo, há quem diga que a Democracia Corinthiana era uma farsa. O que acontece muito entre os ex-goleiros do time, e principalmente Emerson Leão.
Segundo eles, a Democracia Corinthiana era um movimento bom para quem mandava em tudo, mas a grande maioria não participava, ou seja, tudo estava nas mãos de Sócrates, Wladimir, Casagrande e Adilson Alves.
Essas são as declarações de Rafael Cammarota que nomeia seus colegas de equipe como quatro traíras.
Apesar de discordar completamente, o ex-goleiro do Corinthians admite que sua paixão pelo clube continua até hoje, apesar de não ver com bons olhos essa tal de Democracia Corinthiana.
Ele diz que faltava disciplina da equipe técnica e liderança nas tomadas de decisões e, como foi seu caso, na escalação do time em momentos decisivos, mas reconhece que, apesar de tudo, sempre tinha o direito de falar o que pensava.
A Democracia Corinthiana tem uma importância histórica imensa não só para o clube, mas também para o Brasil.
É raro vermos o esporte com uma postura tão marcante na política. Quando falamos isso, estamos considerando também times internacionais que, apesar de seu grande poder aquisitivo, não promovem uma postura como essa.
É uma coragem muito grande de dirigentes e da equipe desafiar uma Ditadura Militar e levar o povo a conquistar de volta seus direitos de voto, liberdade e igualdade.
Certamente esse movimento foi marcante na história do esporte e não deve ser esquecido, principalmente no que se refere ao Corinthians, que é um time bastante popular no Brasil.
Tens a tradição
De um clube tantas vezes campeão.
Pelos teus rivais, temido;
Pela tua FIEL, querido.
Toquinho — “Corinthians do meu Coração” (1983)
A Democracia Corinthiana, no entanto, durou pouco. Aos poucos, no ano de 1984, começou, no futebol, o Clube dos 13 que colocava em cheque a ausência de um presidente no clube para disputar torneios oficiais.
Esse fator e também os modelos de gestão importados da Europa fizeram com que a Democracia Corinthiana chegasse ao seu fim.
Além disso, a saída de Sócrates e Casagrande do time e a troca de técnicos fez com que, em 1985, a Democracia Corinthiana acabasse, mas os ideais e as propostas são bons exemplos até os dias de hoje.
Obras sobre a temática
Para finalizar, separamos um conjunto de obras que podem levar você a conhecer melhor essa temática:
Ser Campeão é Detalhe: Um documentário interessante de 2011, sobre a Democracia Corinthiana e que conta com depoimentos de Sócrates e vários outros jogadores.
Sobre esse tema, Ricardo Gozzi lançou o livro Democracia Corinthiana: A Utopia em Jogo, pela editora Boitempo em 2002.
Também temos o livro A Democracia Corinthiana: Práticas de Liberdade no Futebol Brasileiro, pela EDUC — PUC. O livro é fruto de uma tese de doutorado em 2003 na PUC de São Paulo, sobre a história do futebol brasileiro.
E em 2014, Tom Cardoso escreveu Sócrates — A História e as Histórias do Jogador Mais Original do Futebol Brasileiro, pela Editora Objetiva.