“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo.
Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.
De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi, that is the question.”
Manifesto Antropofágico — Oswald de Andrade
Você certamente já se deparou com o quadro Abaporu de Tarsila do Amaral ou com esse poema acima, ou, ao menos, ouviu falar da Semana de Arte Moderna e do Grande Oswald de Andrade.
De fato, o movimento antropofágico tem várias obras primas, mas dentre as mais marcantes está o quadro Abaporu de 1928 de autoria de Tarsila do Amaral. E ele, inclusive, tem uma história muito interessante e vamos falar mais sobre isso a seguir.
Ao falarmos de modernismo do Brasil não tem como não falarmos desse grande casal da literatura brasileira.
Além disso, é com esse trecho desse poema que se inicia o grande Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. Esse manifesto foi uma verdadeira apologia dos novos tempos artísticos de um novo Brasil na década de 20.
O país estava passando por muitas transformações sociais, devido à industrialização e o desenvolvimento econômico de São Paulo. A cidade passava a ser, pouco a pouco, a nova cidade principal do Brasil artisticamente e culturalmente, tomando o lugar do Rio de Janeiro.
Eram novos tempos de criação e liberdade de um país intelectualmente modernista, podemos dizer assim. E esse é o grande estilo de Oswald de Andrade, como você pode ver nesse poema que acompanhará todo o nosso texto.
O escritor preza por uma linguagem direta, frases curtas (ou telegráficas), sem rima, sem enfeite, mas ele é também bastante provocativo e inteligente. E, como marca do modernismo brasileiro, Oswald leva essas características não só em suas criações, mas para todo movimento artístico que ele se envolvia.
E, afinal, você sabe o que é o movimento antropofágico?
O movimento antropofágico foi um movimento de vanguarda artística que determinou a primeira fase do modernismo brasileiro.
Ele foi liderado por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral e tinha por objetivo promover uma cultura e uma arte de caráter nacional, assumindo a influência de outros países e culturas estrangeiras.
Esse grande movimento tem por marco a Semana de 22 e todos os seus desdobramentos modernistas, como a transformação radical do modelo de arte tradicional e do parnasianismo.
“Já tínhamos o comunismo.
Já tínhamos a língua surrealista.
A idade de ouro. Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipejú.
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Oswald de Andrade
Em Piratininga Ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha.”
Oswald de Andrade — Poema conforme foi publicado em Revista Antropofagia do ano de 1928.
O modernismo e a semana de 22 trouxeram ao Brasil movimentos das vanguardas europeias, com influências do futurismo, do dadaísmo, do expressionismo e do surrealismo. A proposta era trazer os novos tempos e uma nova forma de fazer arte que não era mais a arte tradicional e parnasiana.
Portanto, definitivamente, a década de 20 foi quando surgiu movimento antropofágico e isso foi logo após a Semana de 22 e suas influências modernistas.
O objetivo do movimento antropofágico era, ao mesmo tempo, uma exportação da cultura brasileira, mas uma assimilação e importação de culturas estrangeiras que influenciavam nosso fazer artístico.
Podemos dizer que o Brasil estava diante de vários movimentos inovadores e o movimento antropofágico era um movimento de apropriação e de expressão de um Brasil atravessado por várias culturas, mas com identidade própria.
“Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.”
Manifesto Antropofágico — Oswald de Andrade
Como surgiu o movimento antropofágico?
O quadro Abaporu dado por Tarsila do Amaral ao seu marido Oswald de Andrade foi tão importante na nomeação desse novo movimento artístico que conta-se que o poeta Raul Bopp indagou certa vez Oswald sobre o quadro e ambos analisaram o mesmo por horas.
Conta-se que uma das reflexões foi justamente do nome Abaporu (aba = homem; poru = que come). O quadro chamava-se então O Homem que Come.
Afinal, não seria esse justamente o movimento da arte como um todo? Da arte e sua história? Um eterno comer e deglutir para poder expressar novas formas que vão ser comidas e deglutidas por outros no futuro?
E é essa característica principal que toma conta do movimento antropofágico.
Com essas indagações, uma série de poemas e escritos foram divulgados. Toda divulgação do movimento era feita na Revista de Antropofagia, cujo primeiro número continha o famoso Manifesto Antropofágico de Oswald.
É por isso que a Revista Antropofagia de 1928 começa a anunciar aquilo que viria a ser um novo movimento artístico de mesmo nome.
“Filhos do sol, mãe dos viventes.
Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes.
No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais.
E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental.
Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.”
Manifesto Antropofágico — Oswald de Andrade
Além desse trecho, Oswald de Andrade em sua fúria poética declama o Manifesto da Poesia Pau Brasil “contra a verdade dos povos missionários” e uma “transformação permanente do totem em tabu — absorção do inimigo em sacro”.
E era essa de fato a proposta do movimento antropofágico: uma nova arte que fosse possível mostrar ao mundo o que era um novo Brasil modernista.
Isto é, um país que já havia deglutido tudo o que se passava fora e agora era hora de mostrar para o mundo o que tinha para dizer.
Com aquilo que chegava do exterior se fazia também uma transformação permanente à moda brasileira. O movimento era, como lembra o pensamento de filósofo Friedrich Nietzsche — grande influência de Oswald — um momento de ruminação.
Ruminava-se aquilo que o Brasil devorava de fora e após isso se expressava algo novo.
Algo como devorar a cultura exterior, modificá-la para exportar novamente.
Trazer novidades, gerar novos afetos e redescobrir um novo Brasil e uma nova expressão artística.
Quem criou o movimento antropofágico?
“Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa.
A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem.
Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.”
Manifesto Antropofágico — Oswald de Andrade
As ideias de Oswald Andrade em suas viagens pela Europa eram muito inovadoras, tanto para si quanto em relação às ideias futuristas do italiano Felippo Tomaso Marinetti para a literatura.
Daí surgiu a ideia de pensar algo em específico para o Brasil e uma nova arte brasileira.
O escritor provocava os autores brasileiros para que a influência estrangeira aprimorasse a própria arte brasileira, mas não no sentido de uma importação de vanguardas eurocêntricas, mas sim que tal apropriação fosse feita e exportada com a cultura brasileira.
“Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.”
Manifesto Antropofágico — Oswald de Andrade
No Manifesto Antropófago, na Revista Antropofagia, do estado de São Paulo, o autor mostra suas influências de Freud, Hermann, Marx, Keyserling, Rousseau e vários outros intelectuais.
Ele traz uma linguagem metafórica e com muito bom humor, o que está não só em seus escritos, mas marca também as pinturas e esculturas do movimento porvir.
Para Oswald, o movimento antropofágico foi um verdadeiro limiar, onde ele tomou consciência de uma arte genuinamente brasileira.
Ele era também muito provocativo, por conta da diversidade do debate entre os próprios modernistas, como os adeptos do Movimento Pau Brasil — que tinham por bases uma revisão crítica de um passado cultural e uma poesia primitivista.
O estilo de Oswald era extremamente inovador, telegráfico e direto. Isso é o que fazia com que vários artistas e intelectuais inclusive estranhassem as novas obras que surgiam dentro do próprio movimento.
Mas, no fundo, o comportamento de Andrade era uma grande provocação para agitar a nova cultura brasileira. Ele fez isso tão bem que influenciou não só vários outros movimentos literários, mas a própria música brasileira.
Muito mais tarde, a bossa nova e o tropicalismo serão dois dos exemplos disso.
O movimento antropofágico com as ideias revolucionárias de Oswald trouxeram à tona a união de culturas indígenas, africanas e europeias, para falar de um novo Brasil que assumia essas diversidades.
Além de Oswald de Andrade, outros artistas se destacaram no movimento como Tarsila do Amaral, Alcântara Machado, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Menotti del Picchia, Raul Bopp, Guilherme de Almeida e Ronald Carvalho.
“A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: — Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.”
Manifesto Antropofágico — Oswald de Andrade
Por que o movimento antropofágico recebeu esse nome?
Diante daquela ideia do Abaporu e algo genuinamente brasileiro, cultural e artisticamente, nada mais digno que adotar um comportamento que fazia menção às nossas tribos indígenas antes do descobrimento.
O nome do Movimento Antropofágico surgiu justamente da retomada da tradição e crença dos índios antropófagos, que comiam o inimigo para assimilar suas qualidades guerreiras e trazê-las para o seu corpo.
O termo antropofágico se refere ao ato de comer ou devorar a carne de outro ser humano. Esse termo faz menção aos rituais dos índios brasileiros para adquirir habilidades que eles não tinham, mas que podiam se apropriar e ganhar com elas.
Mas, no sentido cultural e genial atribuído por Oswald de Andrade, a antropofagia tinha como proposta devorar as culturas estrangeiras e renová-las de forma genuinamente brasileira.
Tratava-se de engolir as influências que vinham de fora, para exprimir uma forma do próprio Brasil de se expandir culturalmente.
E ele conseguiu chegar lá. Dentre as obras do Movimento Antropofágico, podemos destacar algumas como principais:
Os quadros Abaporu e Operários de Tarsila do Amaral e o livro Sobra Norato de Raul Bopp. Na música, temos também As Bachianas Brasileiras, na qual Heitor Villa-Lobos se apropriou da composição de J.S Bach.
Além disso, o movimento influenciou muito a forma de fazer arte, principalmente na música que você escuta até hoje em dia.
Isso mesmo.
Não apenas a Bossa Nova ou a Tropicália, mas toda atitude artística que chega mais perto do povo e de sua cultura e subverte os conceitos tradicionais tem uma pitada de antropofagia. Justamente a subversão que pulsa na arte e que muitas vezes é julgado como errôneo e feio em nome de um conceito longínquo e tradicional de arte. Um exemplo disso é o tropicalismo.
“Filiação. O contato com o Brasil Caraíba.
Ori Villegaignon print terre. Montaigne.
O homem natural. Rousseau.
Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling.
Caminhamos.”
Manifesto Antropofágico — Oswald de Andrade
Tropicalismo e movimento antropofágico
Os tropicalistas tiveram influências diretas do movimento antropofágico em suas produções plásticas, musicais e no cinema.
O movimento tropicália estava em outro contexto diferente daquele da década de 20, eram os anos 60, mas, mesmo assim, inaugurava uma nova forma de fazer arte.
Isso porque a tropicália ou tropicalismo veio trazer, em plena década de 60 do jazz e da bossa nova, uma forma de fazer arte genuinamente brasileira e com tons internacionais.
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Rogério Duprat, os Mutantes e Gal Costa são alguns desses nomes importantes do movimento que ainda guardava influências antropofágicas.
Isso, na música, mas mesmo nas artes plásticas tínhamos Hélio Oiticica, no cinema, Glauber Rocha e no teatro, o Grupo Oficina.
A tropicália tinha a mesma característica fundamental do movimento antropofágico que era trazer culturas e artes de várias partes do mundo e fazer uma maneira própria brasileira, inovando a arte nacional.
A própria obra de Hélio Oiticica de nome Tropicália promovia um ambiente que mesclava elementos da natureza, como a areia da praia, a arara, os poemas e a TV. Além de ser uma experimentação, ela mesma era um “devorar” de símbolos da cultura do país.
Essa ideia de devorar é o que faz tanto tropicália quanto movimento antropofágico proporem a mesma coisa.
Ambos os movimentos sustentavam a necessidade de uma internacionalização da arte brasileira e também uma nova forma de ver a arte.
Tal temática foi muito discutida na década de 60 em relação ao uso da guitarra elétrica. Trazer esse instrumento para a música brasileira seria uma ruptura para muitos artistas inclusive.
No entanto, a tropicália era tão antropofágica que, em seu experimentalismo, trouxe a guitarra e várias músicas brasileiras para os seus arranjos, criando um dos melhores momentos da Música Popular Brasileira.
Tanto a Tropicália quanto o movimento antropofágico guardam, portanto, a experimentação de uma criação de algo novo.
A arte aqui não é aquela dos museus, mas uma atividade sensível do dia a dia, o fazer artístico não é mais a do modelo/cópia, mas a ênfase no ato de criar. Os limites da arte e da não arte foram, portanto, revistos.
Assim, com a retomada da tropicália na década de 60, a antropofagia ganha uma nova voz.
“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.”
Manifesto Antropofágico — Oswald de Andrade
Na Bienal Internacional de São Paulo de 1998, havia inclusive uma proposta do olhar artístico sob o viés não mais eurocêntrico, um convite para olhar a história mundial da arte de outro ponto de vista, por isso ela foi chamada de “Antropofagia e Histórias de Canibalismo”.
Um evento como esse certamente é a internacionalização de uma ideia que tem por base a antropofagia de Oswald.
“O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.”
Manifesto Antropofágico — Oswald de Andrade
A própria obra Abaporu está, desde 1995, no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (MALBA) e foi arrematado por Eduardo Constantini.
Já em 2011, no mês de março, a obra esteve no Palácio do Planalto em Brasília como uma homenagem ao mês das mulheres. Na ocasião, várias obras de artistas mulheres e brasileiras estavam sendo expostas.
A arte, de fato, talvez seja reinventar e deglutir várias culturas e novas criações. Pensando desse ponto de vista, nada mais brasileiro que ser criativo e ter influências do mundo todo.
Afinal, o Brasil já faz isso há mais tempo que muitos outros países. A arte brasileira nasceu com essa mistura de todos os continentes e com uma criatividade sem igual.
Essa riqueza nas mãos dos amantes e adoradores da cultura brasileira faz pensar que só mesmo a arte pode apontar para novos tempos, com mais diálogo e menos ódio, menos divisão e mais união.