“Eu quis cantar uma canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer”
Panis et Circensis — Os Mutantes, Gilberto Gil e Caetano Veloso
Se você nunca ouviu falar do tropicalismo ou da tropicália, deve está se perguntando: afinal, o que é tropicália? O que significa tropicália? Talvez você não seja só uma pessoa na sala de jantar, como diz a canção acima.
E não ser uma pessoa na sala de jantar, ou no celular e nas redes sociais como é o caso de hoje em dia, apenas preocupada em nascer e morrer, é o que faz essa temática extremamente interessante.
É necessário ser bastante curioso para entender e gostar das ironias afiadas dos tropicalistas! Aliás, suas letras afiadas e provocadoras são um elemento básico para escutá-las e entendê-las.
Tropicália ou tropicalismo é o próprio movimento tropicalista e foi uma vanguarda artística brasileira que surgiu na década de 60. Esses belíssimos anos que combinaram completamente com a época libertária e revolucionária mundo afora.
Alguns falam até mesmo de tropicalismo musical e tropicalismo nas artes ou tropicalismo na literatura, para diferenciar essa vanguarda nas várias linguagens artísticas, porque, de fato, o tropicalismo estava presente em todas elas.
Quando surgiu a tropicália?
“É somente requentar
E usar,
É somente requentar
E usar,
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.”Parque Industrial — Tom Zé
O tropicalismo surgiu entre 1967 e 1968, nos festivais da música popular brasileira. Isso significa que o movimento surgiu no final dos anos sessenta e em plena Ditadura Militar.
A relação entre Bossa nova e tropicália se dá justamente após a Bossa Nova deixar de ser a expressão artística principal e se ramificar em MPB, Jovem Guarda e tropicália. O tropicalismo apostou muito na guitarra elétrica e no sincretismo de vários estilos artísticos diferentes causando uma verdadeira rivalidade entra Tropicália e a MPB com sua linha mais conservadora.
Podemos dizer que a Tropicália vem à tona exatamente no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record em 1967, aquele mesmo onde se destacaram Gilberto Gil e Caetano Veloso.
A ideia principal do tropicalismo era se afastar completamente da então intelectual Bossa Nova e se aproximar da cultura popular brasileira. Na música, isso significava misturar samba, rock, pop e muitos outros estilos.
Os artistas buscavam uma experiência estética mais aberta e isso mudou os parâmetros não só da música, mas da arte brasileira.
Quem participou da Tropicália?
“Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo”Gilberto Gil Marginália 2
Os mais célebres participantes desse movimento foram os compositores Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, os Mutantes e o maestro Rogério Duprat. Além de Nara Leão, José Carlos Capinan e Torquato Neto. E também o artista, compositor e poeta Rogério Duarte.
Um disco que é um marco do movimento envolvendo vários desses artistas é o Tropicália ou Panis et Circensis. A tropicália fez uma verdadeira mistura entre rock, samba, bossa nova, rumba, bolero e baião. As músicas eram experimentações e aberturas de possibilidades artísticas. Nesse disco, estão reunidos os principais participantes da Tropicália. Outros discos, como os primeiros de Gil e Caetano estão também presente o estilo tropicalista, como nas músicas “Tropicália” e “Geléia Geral”.
O que é o tropicalismo na literatura?
Há uma relação muito interessante entre Tropicália e literatura. O tropicalismo teve muita influência dos movimentos literários brasileiros como o concretismo, o modernismo e a poesia marginal. O tropicalismo retomou muito dessas três vertentes e trouxe-as à tona com suas inovações para as várias expressões artísticas.
Tropicália e Modernismo
“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi, that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.”Manifesto Antropófago (ou antropofágico) — Oswald de Andrade
Tropicália e semana de arte moderna têm muito em comum: inquietude, criação, inovação e liberdade são uma das características que aproximam ambas. Uma é a Semana de Arte Moderna de 22 e a outra é o Tropicalismo.
A Semana de Arte Moderna ocorreu em São Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 no Theatro Municipal de São Paulo, onde cada dia foi dedicado a uma arte específica: pintura e escultura, poesia, literatura e música. Ela foi um marco da renovação artística e da experimentação junto ao rompimento com o passado.
Entre os inúmeros e célebres participantes estavam Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Anita Malfatti, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti.
Anos depois de 1922, uma célebre frase de Caetano Veloso aproxima tropicalismo do modernismo brasileiro: “O tropicalismo é um neoantropofagismo”.
O fato é que o tropicalismo resgata o humor, a irreverência, a anarquia e a rebeldia de um dos mestres da literatura brasileira, Oswald de Andrade.
Esse grande escritor defendia o Movimento Antropofágico na literatura, o que significava que arte brasileira deveria devorar, deglutir e digerir todo e qualquer tipo de cultura, apropriando-se delas para a sua própria expressão.
“Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprima-nos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.A alegria é a prova dos nove.”
Manifesto Antropófago (ou antropofágico) — Oswald de Andrade
Ele retornou aos rituais canibais dos tupinambás de antropofagia, que eram feitos como forma de absorver as qualidades dos adversários (europeus ou não), comendo cada uma de suas partes, e pensou isso para a cultura brasileira.
É assim que a Tropicália e seus vários representantes pensaram em se apropriar da guitarra elétrica, dos Beatles, da Bossa Nova, do Nordeste de Luiz Gonzaga, digeri-las em pedaços como em um delicioso banquete para consagrar uma expressão própria.
A grande diferença entre Tropicália e Antropofagia de Oswald de Andrade é que uma se preocupava com a cultura erudita e a outra com a incorporação de qualquer referencial estético, seja erudito ou popular. E isso, devido à época, significava se apropriar também de uma cultura não só popular, mas também pop, nos termos de Andy Warhol.
O Tropicalismo é uma verdadeira expansão do modernismo brasileiro. O modernismo deixou um grande legado de experimentação e inovação estética, libertando o artista para várias linguagens diferentes.
“No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia”Escapulário — Caetano Veloso / Poesia de Oswald de Andrade
A Semana de Arte Moderna foi um movimento de ruptura da cultura e que fazia no Brasil o que as grandes vanguardas faziam no mundo: romper com todo o academicismo das artes, aproximando arte, pintura, música e literatura da vida, renovando o olhar para o popular e questionando a situação política e social.
Bem como a Semana de Arte Moderna, a Tropicália tinha a proposta de revelar elementos estéticos nacionais, apropriando-se dos estrangeiros. Era predominante a ideia de que, com isso, a arte brasileira poderia se internacionalizar.
A própria guitarra elétrica era um elemento de repúdio para os mais nacionalistas em relação à música, mas a Tropicália incorporou a guitarra e toda a musicalidade brasileira.
O que a tropicália fez na década de 60 com os meios de comunicação de massa é aquilo que foi levantado em 22 e está na cultura brasileira até os dias de hoje no rap, hip hop e funk brasileiros, por exemplo.
Tropicália e concretismo
O concretismo também foi um movimento de vanguarda literária da década de 50 que quebrava os padrões dos versos e da sintaxe, valorizando uma espécie de organização visual do texto escrito, diminuindo a diferença entre a forma e o conteúdo na linguagem poética.
Os movimentos concretistas das artes e da literatura influenciaram a tropicália. Os tropicalistas defendiam um sincretismo de ritmos. Portanto, a tropicália é também um desdobramento do concretismo da década de 50, o que significa que a tropicália trata a poesia e a música de modo plástico, criando jogos linguísticos e brincadeiras com as palavras utilizadas.
Tropicália e poesia marginal
Outra grande relação com a literatura que está presente na Tropicália é a poesia marginal. Ela tem como características a ironia, a paródia, o humor, a realidade fragmentada, flashes desconexos e ruptura com padrões da linguagem como a sintaxe e a pontuação correta. Lembremos que tudo isso está no contexto de uma Ditadura Militar e essas formas de expressões não eram apenas musicais, mas literárias e teatrais.
“não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino.”Paulo Leminski
Os chamados poetas marginais foram aqueles que, na década de 70 e após o tropicalismo, se recusavam a possuir um modelo literário, não se encaixando em nenhuma tradição. Dentre eles, podemos destacar: Chacal, Cacaso, Leminski e Torquato Neto.
Na música, essa marginalidade está em Tom Zé, Jorge Mautner e Luiz Melodia. Podemos indicar ainda: Wally Salomão, Capinam, Alice Ruiz, Charles e Gilberto Gil.
Com as medidas impostas pelo regime militar com o AI-5 e a censura, seus representantes foram perseguidos e exilados. A linguagem devia agora se calar ou fazer metáforas, apelando para meios não convencionais de expressão.
A poesia marginal foi uma manifestação de protesto e denúncia do governo autoritário, gerando poemas espontâneos, não acabados, irônicos, coloquiais que falam da realidade vivida, que zomba da cultura e da própria literatura.
Essa rejeição aos padrões estéticos é o que torna essa poesia e esses poetas, de fato, marginais.
As divulgações não eram, portanto, tradicionais, elas eram feitas por jornais, folhetos mimeografados no fundo de quintal e vendidas em portas de teatro, no centro das cidades e nos restaurantes.
A poesia marginal estava ligada diretamente ao Modernismo Brasileiro de 22, ao utilizarem colagem, dadaísmo, junto à utilização de haicai e sonetos, como é o caso de Paulo Leminski.
Enquanto para os concretistas o que importa é a construção do poema, os marginais se interessam pela expressão, pelo trivial, pelo sentimento vivido e pelo tom geralmente íntimo e confessional.
O tropicalismo deu, portanto, origem à “geração mimeógrafo” que, na década de 70, e por conta da censura, passaram a produzir expressões em formas alternativas de difusão cultural, sendo o mimeógrafo a mais acessível tecnologia para isso.
Tropicália e movimento hippie
“Você
Precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais
E o que eu não sei mais
Não sei
Comigo vai tudo azul
Contigo vai tudo em paz
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul
Da América do Sul
Da América do Sul”
Baby — Gal Costa
A Tropicália e a contracultura estão relacionadas esteticamente. Arnaldo Baptista, um dos nomes do tropicalismo, já indicou uma vez que o movimento hippie e a contracultura inglesa e estadunidense foram um marco do movimento Tropicalista, através do uso do contrabaixo e da guitarra elétrica. Uma verdadeira mistura de Liverpool, Nova York e Salvador.
O Tropicalismo é a contracultura à brasileira. Do nordeste vinha a influência indígena, africana e a música popular nordestina, e de fora vinham os movimentos do estrangeiro, abrindo as portas da percepção para a verdadeira diversidade cultural brasileira até os dias de hoje. Tudo isso é a antropofagia cultural brasileira.
O tropicalismo é considerado por alguns como o movimento brasileiro mais próximo do movimento hippie inglês e estadunidense. Isso porque a tropicália incorporou também as roupas e toda a estética do estilo hippie, com várias cores e tonalidades. E, como era típico da época, um ingrediente a mais estava presente: a psicodelia tão marcante, por exemplo, nos discos dos Mutantes e vários outros.
A Tropicália e a ditadura militar não se davam bem desde o seu início. Em plena Ditadura, alguns Tropicalistas foram perseguidos e presos como Gilberto Gil e Caetano Veloso por manifestarem-se publicamente contra o regime.
“Me dê um beijo, meu amor
Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estantes, as estátuas
As vidraças, louças, livros, sim…
E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo:
É! — proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir”
É proibido proibir — Caetano Veloso e Os Mutantes
Imagine você o cenário em 1968. Os Mutantes, Caetano e Gil se apresentavam na Boate Sucata no Rio de Janeiro. Os artistas penduraram no cenário uma bandeira com a obra de Hélio Oiticica, inscrito: “Seja Marginal, Seja Herói” junto à imagem de um traficante famoso na época que havia sido morto violentamente pelo polícia. Os militares alegaram que Caetano teria cantado o Hino Nacional com dizeres ofensivos às forças armadas. É claro que isso não ia dar em outra, não é mesmo? Os militares prenderam e exilaram Gil e Caetano no Reino Unido.
Eles foram exilados por apresentarem músicas contrárias ao regime. Não só eles, mas a maioria dos hippies brasileiros e tropicalistas, por assim dizer, ou migraram dentro do próprio Brasil ou foram para o exterior. E esse foi o fim do Tropicalismo no Brasil.
Tropicália e música de protesto
Apesar disso tudo, segundo algumas pessoas, a tropicália não fazia propriamente uma “música de protesto” ou um combate político direto ao regime que vigorava no Brasil, e, por isso mesmo, foi um movimento muito criticado pelos defensores das músicas de protesto.
Isso porque os tropicalistas acreditavam que a própria renovação estética e cultural já era uma revolução. Tanto é que o famoso caso da apropriação antropofágica da guitarra elétrica foi algo duramente criticado por demarcar muita influência do pop rock americano e uma invasão da cultura estrangeira na música brasileira. No entanto, certamente, o que a tropicália defendia era revolução e inovação. Basta ouvir as músicas do movimento que você consegue perceber verdadeiros protestos em tom de ironias afiadas, o que certamente contribuía pela luta para um país melhor.
Letras
Aqui vão algumas indicações de letras de músicas que envolvem o movimento tropicália:
Existe um antigo site na internet que se chamava tropicalia.com.br , e você pode conferir algumas informações no link https://tropicalia.com.br/v1/site/internas/discografia25.php
“Tropicália” “Alegria, Alegria”, “Atrás do Trio Elétrico”, “É proibido proibir” de Caetano Veloso;
“Domingo no Parque”, “Aquele abraço” de Gilberto Gil;
“São Paulo, meu amor” e “Parque Industrial” de Tom Zé;
“Não identificado”, “Mamãe, coragem” e “Baby” de Gal Costa;
O álbum “Tropicália ou Panis et Circenses”, as músicas “Miserere Nobis”, “Bat Macumba” e “Minha Menina” dos Mutantes;
Confira também o Livro: Jovem Guarda e Tropicália de Rita e Carla Gullo.